Artigo sobre Adoção

Esse artigo interessante de autoria da minha amiga Marta foi publicado no periódico de adoção 03/2010 de GEAA-SBC

Preparando Pais Para a Paternidade / Maternidade Afetiva*

A adoção é, sem dúvida, um gesto de amor, não um ato sublime como muitos gostam de ressaltar, tampouco um gesto corriqueiro como outros, simplórios, preferem considerar.

A adoção é realmente um gesto de amor, mas não é só isso. Por tudo o que envolve uma adoção, principalmente por ela se originar do encontro de duas partes que viveram ou ainda vivem situações de sofrimento intenso (geralmente perdas e dor pela infertilidade de um lado, abandono e maus tratos do outro lado), explicar a adoção apenas como um gesto de amor é pouco.

Visto pelo lado do encontro de dois lados sofridos que finalmente se relacionam para vivenciar os afetos, é preciso considerar tudo o que permeia esses dois lados, para que o encontro se dê, cresça e perpetue de modo organizado, sólido e integrado, de modo a que esse encontro se transforme em um relacionamento verdadeiramente familiar. E tudo o que ocorre ao longo desse encontro e dessa caminhada pela construção de um relacionamento familiar tem a ver, não apenas com o surgimento espontâneo ou construído do afeto, mas com o trabalho responsável de alguns profissionais e instituições envolvidas. Tem a ver com cidadania, já que se trata da construção de uma família constituída por laços legais, afetivos e não co-sanguíneos e pelo desejo assumido e consciente de se formar uma família.

O trabalho técnico junto aos pretendentes a uma adoção e aos guardiães ou já pais adotivos, assim como o trabalho com a criança abrigada ou já desabrigada e inserida numa família substituta são essenciais, necessários mesmo. Mas nesta ocasião vamos nos ater principalmente ao trabalho com os adotantes.

São muitos os aspectos a serem trabalhados com os pretendentes à adoção. Existe o trabalho realizado nos fóruns, que é um trabalho mais investigativo, para detectar eventuais problemas psicológicos graves no casal ou pessoa interessada em adotar; para avaliar se há uma motivação consistente para a adoção na pessoa ou no casal interessado em adotar e para verificação de condições sócio-econômicas minimamente estáveis para a chegada de um ou mais filhos no lar daquela ou daquelas pessoas. Atualmente, com a implantação da Lei 12.010/09, os fóruns passaram também a ser responsáveis por ministrar cursos de preparação psicossocial e jurídica aos pretendentes à adoção, trabalho que antes, quando existia, era realizado por Grupos de Apoio à Adoção, que em sua maioria no Brasil são Organizações Não Governamentais e, nesse sentido, entidades compostas por voluntários.

O trabalho dos grupos de apoio junto aos pretendentes e essa nova função das equipes técnicas e autoridades das Varas da Infância e da Juventude não é investigativo, mas formativo, psicopedagógico, cultural, enfim. Trata-se de preparar os pretendentes, minimamente que seja, para lidar com as questões legais ou jurídicas da adoção; para o processo de espera da criança (às vezes longo); para a escolha do perfil da criança (que pode ser alterado no decorrer da espera); para a aproximação com a criança quando chegada a vez na fila do cadastro para a adoção e, finalmente, para o acolhimento e a construção dos vínculos afetivos, que levam à adaptação e integração familiares (não da criança à família exclusivamente, mas dos membros da família entre si).

O trabalho dos grupos de apoio não se encerra, como nos fóruns, com a conclusão do cadastro ou do processo de adoção, mas pode ser prolongado, principalmente quando a ênfase do trabalho recai não apenas no pré-adoção, mas também na fase do pós-adoção.

São muitos os aspectos a serem trabalhados no preparo de pais e mães afetivos, dos psicológicos, educativos e culturais, passando pela análise dos preconceitos e discriminações que ainda permeiam uma adoção, inclusive dos próprios pais e familiares adotivos, mas também da escola, da mídia, dos profissionais da saúde etc. É preciso trabalhar questões específicas como aquelas que envolvem a adoção de grupos de irmãos, as adoções inter-raciais, as adoções de crianças com necessidades especiais ou aquelas que podem não ter necessidades especiais, mas apresentam seqüelas psicológicas do período de vivência com a família biológica (períodos quase sempre permeados de sofrimento, sentimento de rejeição, desenvolvimento de baixa auto-estima, apegos e rupturas freqüentes etc.) ou mesmo no abrigo (onde a individualidade quase não existe e os apegos e rupturas persistem). Não se deve romantizar uma adoção. É preciso que as pessoas conheçam bem a realidade e os desafios de uma adoção.

A maioria das adoções costuma ocorrer sem maiores problemas, porém é preciso estar preparado, senão para problemas, mas, sobretudo para a prevenção dos problemas. O trabalho junto aos pretendentes e aos já pais adotivos deve ser sempre o da prevenção de mais sofrimento para aqueles que já sofrerem tanto: crianças abandonadas ou maltratadas e adultos que, na maioria dos casos, apresentam as dores da infertilidade ou da perda de fetos ou filhos já completamente formados.

O trabalho junto aos adotantes deve incluir a ajuda às famílias na construção de sólidos vínculos afetivos entre si, o que nem sempre é tarefa fácil, tanto pelo histórico de sofrimento dos envolvidos, quanto principalmente pela idealização do filho (pelos adultos) ou dos pais adotivos (pelas crianças). Essa ajuda ocorre quando se enfatiza o trabalho no momento da guarda ou mesmo no pós-adoção e pode incluir a orientação dos adultos e o encaminhamento desses e/ou da(s) criança(s) para um tratamento psicoterápico. Em todos os casos, no entanto, é certo que não se pode negar o passado da criança, não se pode impedir a criança de conhecer sua origem, não se deve desprezar eventuais vínculos que a criança estabeleceu anteriormente (na família biológica ou no abrigo). É preciso aprender a detectar o que é que a criança está testando (limites, regras, afetos) e o que a criança está projetando, transferindo de conteúdo seu (seus sentimentos em relação a vínculos que estabeleceu anteriormente) para os pais adotivos (que não necessariamente merecem tais conteúdos, mas que devem aprender a ser os receptáculos daqueles conteúdos naquele momento, sem se sentirem pessoalmente agredidos – na maioria das vezes, mas não na totalidade das vezes, os pais adotivos não merecem tais conteúdos, sobretudo os mais agressivos).

O resultado desse trabalho de apoio à adoção, na maioria das cidades que contam com grupos de apoio há vários anos, é visível, não apenas junto aos pretendentes e aos pais adotivos, mas em toda a comunidade. A adoção deixou de ser vista como algo a ser escondido, como se fosse motivo de vergonha para os envolvidos. A adoção, embora ainda não seja legal em 100% dos casos, o é na maioria deles. A própria lei tornou a adoção mais democrática, pois a fila de espera para uma adoção desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente e, depois, com a criação do Cadastro Nacional de Adoção, é a mesma para quaisquer pessoas inscritas legalmente nos fóruns. A mídia já é menos sensacionalista e mais realista, informando quase sempre corretamente assuntos relacionados à adoção. As pessoas já têm como certa a necessidade de revelação da adoção para a criança, ainda que possam ter dificuldade em fazê-lo, quando fazê-lo ou como fazê-lo. As pessoas já aceitam adotar crianças que não sejam recém-nascidas (embora muitos, naturalmente, preferissem adotar os bebês recém-nascidos) e muitas vezes aceitam crianças de raças distintas de suas próprias, além de grupos pequenos de irmãos. Grande número de pessoas reconhece as peculiaridades de uma adoção e se dispõe a recorrer à ajuda de grupos de apoio ou terapeutas para lidar com as novas composições familiares. Já se compreende que o amor não pode curar tudo. Mas é certo que nada adianta sem o amor incondicional a uma criança ou adolescente.

Falta ainda às pessoas reconhecerem a necessidade de ajuda constante, em média por pelo menos dois anos após a adoção da criança, período necessário para a plena construção dos vínculos familiares. Os problemas que ocorrerem a partir de então, de modo geral, já não serão problemas específicos da adoção (do filho adotivo ou de pais inexperientes), mas problemas de uma família, uma família como outra qualquer que pode estar precisando de ajuda, não para construir vínculos afetivos, mas para reconstruir tais vínculos.

Muito ainda precisa ser sonhado e realizado em relação à adoção pelos grupos de apoio, pelos profissionais da área e pela sociedade como um todo. O sonho é o de nenhuma criança crescendo afastada de uma família, natural ou adotiva. O sonho é o de abrigos cada vez mais vazios e com crianças permanecendo neles o menor tempo possível. O sonho é o de que as pessoas que desejam ser pai ou mãe não escolham a criança por sua aparência, raça, idade, sexo, histórico de vida ou condição de saúde. O sonho maior é o de que as pessoas simplesmente não escolham seus filhos, mas aceitem os filhos que precisam de pais. O sonho é o de crianças vivendo uma infância digna, sem sofrer maus tratos, negligência, violência física, sexual ou psicológica. O sonho é o de nenhuma criança ser abandonada por quem quer que seja, família biológica ou substituta. O sonho é o de conseguirmos pais para filhos e não filhos para pais.

Sonhos talvez difíceis de serem realizados, mas eram também difíceis alguns dos sonhos que sonhávamos no início dos trabalhos dos grupos de apoio e muitos deles foram realizados. Quais destes novos sonhos serão igualmente realizados? Sinceramente não sabemos. O que sabemos é que para tais sonhos serem realizados, não basta que os sonhemos sozinhos ou coletivamente. É preciso que, além de sonhar, lutemos contra os preconceitos que os impedem de acontecer; lutemos contra as injustiças que acometem as crianças e suas famílias; aceitemos ajuda de profissionais e pessoas que passaram pelas mesmas experiências que nós; lutemos contra nossas próprias acomodações, deixando de tratar a causa da criança como uma causa que pode esperar. Crianças não podem esperar, elas crescem todos os dias e sua energia para crescer não é apenas o alimento físico, mas o carinho, o amor, a compreensão, a boa educação, as boas condições de saúde e a harmonia nas relações ao seu redor.

Se conseguirmos realizar parte destes sonhos, muitas crianças terão o que precisam para crescer saudáveis física e emocionalmente e para construir um mundo, quem sabe, mais justo e harmonioso para todos.

*Marta Wiering Yamaoka, coordenadora técnica do GEAA-SBC, psicóloga judiciária do Fórum de SBC, especialista em Psicologia Jurídica pelo CRP-06.

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